sábado, 2 de outubro de 2010

Esta é a história da minha vida, contada como a contaria há muito tempo, aparentemente muito mais, quando havia mais por trás das palavras e para além disso ainda uma miríade de outras coisas.

O incrível é que é mentira. A vida está sempre preenchida, seja do que for, seja isso mais ou menos ou nada, coisas são coisas e dedicamo-nos tanto mais a elas quanto menos são - e isto vale tudo ao contrário, e aí é que está o problema deste taralhoco em particular.
A verdade (é só uma expressão, a sério, não acredites) é que me descuidei de mim.
Quando nada tinha que não eu, escavei profundos alicerces da profundeza da solidão em que me encontrava, construí um santuário impenetrável de predicados forrado a ouro, pintei-lhe um cenário de azul e umas montanhas negras ao fundo, bem longe, lá, muito perto do passado. Foi a minha obra prima. Chamei-lhe Palácio das Trégoas. Ao décimo quarto dia, que a deus foi possível em sete e ai de mim querer com ele competir, descansei. Ao meio dia do décimo quinto, vinha lá no horizonte uma multidão. Chegaram, entraram, falaram e riram-se e choraram e todos apreciaram a beleza do meu palácio maravilhoso. E muitos o gabaram e eu gabei-o a todos. Poucos viram o meu quarto e nenhum ficou.

Um dia (segundo a Lei dos Pacotinhos de Açucar, hoje é o dia), senti-me só durante imenso tempo. E entende-me, não agora, nem ontem, nem há um ano. Senti-me só porque ninguém vive comigo, neste palácio. Porque deixei de me ocupar dele, de lhe limpar o pó e de pintar os rodapés, até que a fachada passou a ser a principal atracção e a única parte de que me ocupo, para receber as visitas. Fartei-me e fugi (e aqui começo mesmo a mentir - estou há tempo demais no palácio, as minhas pernas atrofiaram de não fazer exercício). Não fugi pela frente, onde toda a gente me ia ver, mesmo que não me fossem seguir - estavam ali para ver a obra prima, remember?
Não, fugi para as montanhas, lá atrás, lá ao fundo. E quando olho para trás pela enésima vez, porque os cobardes e os homens sensatos olham sempre para trás, qual deles sou eu, vejo pela primeira vez a minha obra prima. E não se me apresenta com o nome que lhe dei e aí percebo, com uma gargalhada triste, que nem os erros ortográficos são só erros ortográficos, que o meu glorioso "Palácio das Trégoas" foi só um palácio ao ego. Abandono então, de vez, a fachada épica e o negligenciado interior e fujo em direcção ao passado onde fui triste, às montanhas que me fizeram, para que me reparem. E caio num buraco que não tinha visto antes, curioso...

Tentando redescobrir-me,
Miguel de Miguel

2 comentários:

Maria Luisa de Albuquerque Inácio disse...

li e gostei. gostei muito. vou continuar a minha visita pelo seu blog. até agora só tenho de lhe dar os parabéns pela sua escrita. continue!

Silêncio do Mar disse...

gostei..... é tão complicado descobrirmo-nos