quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

das doenças psicológicas (capítulo segundo)

Vais morrer, foi só isso que eu ouvi.

Acho foi da adrenalina, a adrenalina tem como único objectivo concentrarmo-nos no mais importante para a sobrevivência. Protecção. Fuga. Luta. Ela aumenta o batimento cardíaco, dilata as pupilas para aumentar também o campo visual. Tudo se abstrai que não seja o propósito mais visceral, mais primitivo. Sobrevivência.

Findos os trinta e dois minutos de eufemismos e rodeios, a adrenalina preservou e ampliou na minha compreensão apenas duas palavras. Vais morrer.

E, como se morta, a minha alma separou-se do meu corpo e analisei-me, em câmara lenta, um animal. Virei-me de costas para o médico e fechei os olhos. Protecção. Ouvia a sua voz, senti a sua mão no meu ombro, hesitante. Sempre achei que me irritaria, mas a sua tentativa de me reconfortar embalava-me, enternecia-me. Olhei-o nos olhos, como quem olha uma criança, com um sorriso de que nunca mais me vou esquecer. Com a maternalidade condescendente de quem explica a um filho que não, o Pai Natal não pode trazer a lua dentro do trenó para te dar, meu querido...
Estou óptima, deve ter havido uma troca nos exames, com certeza, meu querido... Fuga.

A sua expressão não mudou. Ficou a olhar para mim, por detrás dos seus óculos, um perdigoto na lente esquerda, mais ou menos para dentro e para baixo. Ficavam-lhe mal. Sobretudo, ficava-lhe mal o perdigoto. Queria arrancar-lhe dali aquele perdigoto, óculos e tudo. Luta. Ele entrava-me pelos olhos, tomava-me a atenção, multiplicando-se até eu não ver mais nada.

Foi quando senti o último dos meus sorrisos afogar-se na espuma que me escorria pelo queixo, o último dos meus pensamentos tolher-se de ecos de há 32 minutos atrás. Convulsões. Exames. Massa no cérebro. Inoperável. Decisões.

Se pudesse, acharia agora isso tudo muito mundano, de facto.
Porque é que não posso? Porque tu não me deixas, porque teimas que eu não existo, ou que já não existo, só porque não sabes o que sou, nem eu. Sim, porque ambos temos certeza que tu, que sabes, sabes o que és, sabes como te originaste e como tomas acção no que quer que seja. Tens a certeza absoluta que és mais que um pensamento e isso faz de ti sábio.

E talvez, só talvez, estejas errado. E aí, não só não sabes mais de ti do que eu sei de mim, mas também nunca poderás vir a saber, porque estás convictamente na direcção errada.
Mas se me deixasses... Aí, dizia-te que só te custa porque te valorizaste. E isso não é bom nem mau. Mas é certamente, refrescantemente, inspiradamente diferente. Dizia-te que a civilização construiu a tua mente num castelo de cartas, que é só por isso que ela cai. Se nada se tivesse construído, nada havia que se pudesse destruir.

Se queres ser uma criação, se queres estar seguro, então senta-te e aprecia. É esse o teu destino. Quando morreres, não vais ter sofrido, e isso não está errado. É como é.

Mas se queres ser criador, então arranca a maçã e come-a, come-a com caroços e tudo, e depois constrói o castelo de cartas mais alto que conseguires. E, quando ele cair, vais cair com ele. Vais querer sobreviver, proteger-te, fugir e lutar. Quando não conseguires, a morte vai doer-te como um espigão de aço quente enfiado pela garganta. Mas vais ter um propósito. Algo que só tu pudeste fazer porque só tu te atreveste.


O homem é aquilo que fez de si mesmo, com todos os ganhos e custos. O facto de nos custar tanto aceitar a morte é o que nos diz o valor que emprestámos à vida. E isso, isso é ser maior que a vida. E maior que a morte.

Descobre para que queres existir :)


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Hoje queria estar como que morto, numa incubação branca, uma morna hibernação do sentir.
E não sentir.
Nem a chuva a bater na janela, nem a janela por dentro da chuva,
Nem a mim, por dentro da janela.
E deixava o mundo de se dobrar em dentros e foras
E espaços, e horas.
Representar,
Engolir o papel e expirá-lo,
Como quem seja realmente a própria promessa de que se ama.
Adensar-se na imaterialidade de uma paixão ardente e, ainda assim,
Dançar.
Ser mesmo as curvas e os saltos e sobressaltos.
Alugar a alma às estrelas
E ser alma. E derramar-se um pouco por cada momento.
Percutir o sentimento como a um instrumento que se abraça. Que se é,
Quando se é o amor e o próprio amor se pode fazer apaixonar.
                                                            
Espelho Teu


Olha, Vê, Saboreia.
Descobre-te, saboreando-te.

P.S. Já era tempo de um post mais curto para terem paciência de ler :)


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

das doenças psicológicas (capítulo primeiro)


Ontem entrei num café e estava a dar "as tardes da júlia" (e não, não serão discutidas nesta publicação as evidentemente variadas doenças psicológicas da referida "júlia". talvez noutra ocasião).

de qualquer maneira, enquanto tentava distrair-me desse ruído de fundo, apanhei duas ou três frases. qualquer coisa sobre depressão, mães com depressão ou algo do género. a meio do esganiçado discurso, contudo, ouvi uma afirmação que, mesmo com o benefício da dúvida de ter sido dito num programa tão sério e respeitável, me arrepiou por dentro.

"uma de cada quatro pessoas em todo o mundo sofre, sofreu ou sofrerá de depressão."

isto faz-me pensar, mas pensar a sério. isto assusta-me, não porque temo por mim (eu sei que não vou sofrer de depressão), não pelas implicaçoes directas desta afirmação, mas pelo que leva alguém a achar que é verdade. comecemos, então, do início.



o homem era um animal normal. nascia, comia, dormia, fugia, lutava, reproduzia-se e morria, que é basicamente o que todos os animais fazem, mas alguma coisa aconteceu que nos tornou diferentes. arbitrariamente ou advertidamente, por um conjunto de factores, o que é certo é que fomos ganhando uma dimensão psicológica e social algo maior. muito maior, dirão muitos.

ora, quem teve filosofia no 10º ano sabe perfeitamente que o homem é definido como um ser "psicológico, biológico e social". como, aliás, todos os animais, julgo eu. julgo também que não somos 'super-animais', que a natureza não nos teria feito sem fraquezas. a natureza é muito mais eficiente do que frequentemente pensamos.

sendo assim, se nos aumentou o poder psico-social, além de nos ter diminuido o poder biológico (e por poder biológico entenda-se a capacidade de sobrevivência em meio selvagem, o instinto), aconteceram outras coisas que nos foram enfraquecendo.

dir-se-ia que a sociedade é regida pelos políticos, numa pirâmide social que vai descendo com o grau de importância das pessoas. mas a sociedade é agora uma entidade própria, com uma regência própria. deixou de ser a 'societas', a 'associação amistosa com outros', para se tornar um conjunto de regras rígidas que já ninguém controla. já não há chefes da sociedade, tal como não há chefes do dinheiro.

da mesma maneira que nos criou a natureza, criámos a sociedade. perdão, não da mesma maneira, existe uma crucial diferença. a natureza sabe o que está a fazer. a natureza está a controlar a situação. se 'mijamos fora do penico', a natureza manda um terramoto e mata centenas de milhares de pessoas em 2 minutos, como agora, no Haiti, e em tanto sítio. não é vingança e não é castigo. a natureza não sente raiva.

a sociedade oprime-nos, a sociedade reprime-nos, compele-nos a pensar de maneira restritiva, marginaliza-nos e nós prestamos-lhe reverência. é curiosa a tendência do homem para prestar reverência ao que cria. e continuamos, não porque dependamos da sociedade, não porque precisemos dela, mas porque a alternativa é impensável. anarquia.

não me interpretem mal, não defendo a anarquia. de modo algum. só estou a dizer que há sempre uma contrapartida. quando me conhecerem melhor, hão-de perceber-me melhor.

a alternativa é impensável porque também temos algo que a natureza não tem. amor. a natureza equilibra as coisas. invariavelmente. impiedosamente. sobretudo, justamente.

nós somos diferentes. nós amamos. amamos a sociedade porque a criámos, porque somos parte dela, porque ela é mais que nós, porque nos liga, porque é uma coisa que podemos amar. e isso tira-nos objectividade, naturalmente.

como o monstro de frankenstein. criámo-la. e agora amamo-la demasiado para a matar. ela permite-nos a razão. e a razão permite-nos a depressão. e, da depressão, falamos no próximo capítulo, se tiverem paciência.


não chegámos hoje ao cerne da questão, mas a moral da história de hoje, mais uma vez

Descobre-te individualmente e descobre-te socialmente. Pela ordem que quiseres, mas faz    :)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Hoje queria estar triste, tudo vos soa melhor quando se está triste. Quando se está triste ou chateado, tudo se escreve com a frescura de um tabefe, repercutindo-nos na imensa vastidão do universo, e que até parece que se é o que quer que seja.

Não, não me enganei. Tudo vos soa melhor, a vós. Sim, a ti, "caro leitor".

Tenho o mais pleno direito, se é isso que te estás a perguntar.
Ora, mas que caraças... Com certeza que, noutra qualquer situação dos dias de nosso senhor, te sentirias tentado, se não me conhecesses já, a dizer-me que não estivesse triste, que há o cancro e o negrume e a guerra e a fome e as pulgas e tudo o resto que este mundo cria para infernizar a vida a quem elas mordem, para morder o juízo a quem está quieto no seu canto só porque não teve a sina de ter os maiores problemas do mundo.

Aí, já te servia a comparação, não é? Pois então, se a minha tristeza se deve perder na obrigação que me impõe a desgraça dos outros de ser feliz, porque carga de sumo não haverá a tua de se urinar pelo manto negro abaixo e evaporar-se no suave fuminho etéreo da felicidade ao ler a minha?

Deixando de parte as vossas dúvidas existenciais acerca do "nos" e do "vos", a vossa incapacidade de ver para além da inexistente gralha ortográfica que o vosso inconsciente quis imputar ao autor deste textículo (só porque gostei do trocadilho totalmente despropositado e quase ordinário), continuemos. Se não me entenderdes, sugiro, ainda que desesperançado, que volveis a ler tudo desde o início, com um olho no espelho e o outro no vosso reflexo, com um ouvido nas minhas palavras e o outro nas do vosso subconsciente. Se, como é de esperar, não conseguistes, deixar-me-ei de falar de jibóias abertas e fechadas a quem não as vê. Raio de mentes tacanhas, as vossas...

Seja como for, tudo vos soa melhor quando se está triste.
Porque quando se está triste ou chateado, as emoções são fortes, o peito inflamado, o juízo embriagado. A língua solta-se e a pulsação aumenta e ficam pequenas nuvens negras sobre a cabeça que soltam trovões ou chuva, ou ambos, conforme se se está chateado ou triste, ou ambos.

E perguntais vós se, quando se está contente ou apaixonado, as emoções não são igualmente fortes, o peito igualmente inflamado e o juízo igualmente embriagado. Se a língua também não se solta e a pulsação não aumenta e não fica um céu límpido sobre a cabeça que solta raios de sol ou luz das estrelas, ou ambos, conforme se se está contente ou apaixonado, ou ambos.

Mas é claro!
E inquiris vós, então, porque vos soa tudo melhor quando se está triste, se tudo tem o mesmo valor quando se está contente, se tudo se escreve também com a frescura de um beijo, repercutindo-nos na vastidão do universo, e que até parece que somos o que quer que seja?

Agora, para aqueles de vós que não perceberam à primeira, não faz mal.
Porque contente ou apaixonado, também se escrevem coisas bonitas, que também soam bem. Mas aí, eu tenho melhor que faça que escrever.

Por isso é que tive que fingir chatear-me convosco por uma ninharia.

Um texto é uma sala de palavras que se remetem e moldam umas à outras, como milhares de espelhos deformados. Como numa sala com milhares de espelhos deformados, tudo depende do ponto de que se vê, e esse ponto muda de cada vez que muda o observador.

Mais uma vez, DESCOBRE-TE :)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Primeiro Relance

Ser maior que a vida é ser mais pequeno. Talvez não passe pela diferença, já que não é diferença fazer, como tantos, questão de não ser igual.

Ser maior que a vida é ser geral. É ser e não ser, ter a dor sentida e a dor fingida tocando ao mesmo piano dois estilos diametralmente opostos numa melodia que sobe aos céus e mergulha no poço fundo dos infernos e rouba todo o espaço entre uma coisa e nenhuma outra.

Ser maior que a vida é ser pouco mais que um arrepio na espinha do universo.

Ser maior que a vida é viver entre as ondas do sangue, subir, com o vinho, à cabeça de deus e trocar as voltas ao mundo girante com a força suave do próprio pensamento.

A magia do espelho não está nos mitos. O espelho é um objecto inanimado.
Toda e a única magia que tem um espelho está naquilo que reflecte.
 
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."


Feitas as apresentações, espero tornar a publicar em breve.
Descobre-te.