sábado, 26 de junho de 2010

O último reduto

Nascer-se ângulo em linhas rectas.
Rebentar-se acutilantemente, rasgar os padrões crónicos do mundo.
Espumando da boca a teima de quem vai arrancar o passado
Às sementeiras secretas do fundo de uma mente bem mais louca,
Envenenar a insanidade ordenada que não veio. Ainda.
Um berro épico, o último berro.
O último choro que explode na garganta rouca e morre.
E não finda.

Brota fogo nos meus ossos. Faço-os de ferro quente
Contundentemente empunhado na ameaça apoteótica
De um sol negro a nascer para o último dia de mim.
Brota fogo, e choram lavas de raiva
Os dois olhos de um só que é sem fim
Porque se lança, de dentes e escória,
E se faz indigesto e difícil de engolir
À ácida torrente maremótica que,
De insurreição a memória,
Se mostra incapaz de um devasso digerir.

Assim se vive numa psique anormal.
Assim se faz eterno um mortal.
Combate como quem fosse guerreiro.
Assim se mantém vivo um herói verdadeiro,
Na honra que obriga a colidir e a morrer.


a poesia já fazia falta, não acham?

segunda-feira, 14 de junho de 2010

um proscrito

Há muito tempo que não sentia uma tristeza assim, tão completa. Esfaqueia-me entre as costelas, enche-me os pulmões e não me deixa lamentar o ar que não entra. Alimenta-me e veste-me de uma nudez frágil com que me agarro com cada molécula a uma ligação, uma ligação qualquer. Como um idiota, corro dos meus pensamentos como quem corre por gosto, mas o chão é duro, a meta inglória e o bater do coração no peito cada vez mais irritante. Fujo-lhe, como um idiota, e bate com cada vez mais força, cada vez mais depressa. Num tropeção, dou comigo caído num choro de criança. Sangro uma dor que não sei de onde vem. Passam e olham. Alguns perguntam-me se quero ajuda. Não sei para quê. Não sei como lhes digo que os amo, que os amo tanto que me dá vontade de chorar, que sei que não é normal, que está tudo bem à mesma. Que nem tudo tem que ser normal. Passam e olham e eu suplico. E fazem sempre a mesma careta de indignação e de medo. E vão-se. Alguns, esperam que vá atrás deles. Não sei para quê.

 
Derramado numa berma, pede ajuda e não sabe a quem. Pede ajuda a quem passa e não sabe bem para quê. Deixa estar, é louco. É louco.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Era uma vez uma história.
Era uma vez muitos sonhos que viviam muito felizes dentro de um pequenino corpo, roliço e rechonchudo. Às vezes acordavam, levantavam-se de mansinho e, pé ante aveludado pé, contornavam as duas grandes avelãs e flutuavam pelo ar, invisíveis a quem não procurasse o brilho encantado que deixavam nos olhos do pequenote. Depois, iam até ao espaço, desenhavam-se nas estrelas e vestiam fatos de astronauta com capacete e tudo. Mas mantinham-se longe do Sol, para não se queimarem. Um sonho queimado é um problema gravíssimo!
Aprendiam os nomes dos planetas e sabiam quais eram os mais bonitos e quais os mais feios. Ficavam longe do Vénus, que tinha um ácido no ar que lhes estragava o cabelo e os dentes, e também (por algum motivo) nunca iam a Marte, mas gostavam muito de ir à Lua e ficar a ver a Terra de cima. Então, aprendiam os nomes dos países e sabiam que podiam ver a muralha da China, mesmo que nunca tenham tido tempo de a ver.

Depois chovia, e eles apanhavam boleia e riam muito alto ao bater nas bochechas gordas. De vez em quando, numa gota de chuva mais pesada, caíam com muita força nos olhos e aleijavam-se. Então, escorregavam dos olhos para as bochechas gordas e ficavam muito, muito tristes e choravam muito, mas depois passava.

Uma vez, encontraram uma luzinha com um brilho muito bonito. E ela cheirava a areia molhada na pele, a sumo de pêra bebido de um copo, com as duas mãos, falava de um sorriso tímido e um estalo de beijinho quente na bochecha.
Então, de cada vez que iam ao espaço, todas as estrelas eram aquela luzinha, todos os planetas tinham aquela areia, mas seca, que não há água nos outros planetas – e os sonhos bem sabiam como às vezes tinham sede. E, quando tinham sede, lembravam-se do suminho de pêra fresquinho e, antes de ir para casa bebê-lo, sentavam-se na Lua, um bocadinho. Era como se a luzinha estivesse ali, para lhes dar a mão e mostrar onde era, afinal, a muralha da China. Na pouca gravidade da Lua, sentiam o peso de uma pequenina cabeça sobre o ombro, o calor do Sol como um beijinho tímido na bochecha. E diziam – quando for mais crescido, vou fingir que já não venho ao espaço, porque eles não acreditam nessas coisas, e que não sei que caminho seguem as coisas. Vou brincar com eles para que me levem a sério. Um dia, quando tiver idade para que me levem a sério, vou ser o rei do universo, só para poder reservar um lugar para ti aqui, comigo, na Lua. Quando tiver idade, vou a Marte – porque é ridículo uma criança pequena saber dizer que vai amar alguém. Não é?

É quando vejo quanto cresci que espero estar à altura do que já fui. O plano, esse, mantém-se.