domingo, 30 de maio de 2010

podes saltar para o penúltimo parágrafo


Ele viu-a e foi o suficiente. Seja quando for que se venha a esquecer dela.
Não a ama, mas há alguma coisa nos olhos e quer defini-la. Mentiu demasiado para gostar de segredos. Ou então, vive por eles e morre com eles. E ainda assim, tem que a descobrir, que a analisar, tem que a conhecer e ter a certeza de que não sabe o que quer dela.
Não faz sentido que uma aventura em Paris se adeqúe quando um beijo é íntimo demais, que o mais vulgar dos encontros faça desesperar por mais um. Há alguma coisa ali. Há um sorriso triste e um segredo para descobrir. Há uma genuinidade em que não quer acreditar e uma vontade de continuar incrédulo. E não a ama. Nunca teria medo de admiti-lo, muito menos agora.

 Há uma voz que não se cala, na occipitalidade de um murmúrio, que insinua coisas absurdas.
Para quem se apercebe, a diferença entre ser corajoso e não ter o que perder reside no medo, não é senão um motivo ou a falta de motivo, para cada uma das duas causas. Apesar de terem o mesmo efeito, para quem se apercebe, a diferença é surpreendente.
Se a coragem pede que se assuma o que se tem a dizer, ele escolhe todos os dias a cobardia. Todos os dias, menos neste.

Talvez não o admita (o amor, digo) porque tenha algo a perder. Talvez esteja a pensar a sério afastar a própria diferença, se isso impedir que a sua aparente psicose a assuste. Ela, para que entendamos a quem me refiro. Ela fumou-o de um trago e deixou-se sentada, porque é isso que ela faz. Ela foi natural, foi directa e normal e mexeu-se do seu lugar apenas o suficiente para lhe mostrar que viu e não se comove, um pouco como um filme de sábado à tarde que não faz trocar a noite de dança por um serão de sequela.

A primeira coisa que aprendeu sobre ele é que sofre de uma constante falta de atenção. Ou resistência à atenção. Que o seu ego tira o chapéu e rouba a palavra à indignação, de cada vez que lhe chamam esquisito. Aplausos para o triste palhaço. O número foi engraçado, o circo acabou. Ela espera agora que ele lave a cara e tire as tintas.
O que ela não sabe é que não eram tintas. As tintas são agora, e é agora que ele finge, quando o mundo todo está a ver. O circo começou quando saiu da intimidade da tenda. O que ela não sabe é que há quem precise de mentir para falar verdade. Mesmo que não minta.
Sobretudo, ela não sabe que ele a viu por entre as tintas que não estava a usar.
E, por detrás das lentes azuis que ela usava, ele viu-lhe uns olhos bem bonitos, e desejou do fundo do coração que lhe revelassem mais que o medo irremediável que ela sente de palhaços.

6 comentários:

b disse...

Ele quer defini-la ou seja, já quer matá-la sob a idéia de uma idéia de outra idéia.
Definir já é o impulso de fugir com ou sem tintas.
Palhaços têm sentimento mas não o trocam pelo poder que exercem sobre todo mundo, seja qual for o tipo de poder.
Ninguém define - e bom o mistério de
"N'est pas une pipe"

m disse...

em noites como esta sabe bem ler-te..

Anónimo disse...

A verdade é aquilo que dela fazemos e não o que ela de nós faz. Então, necessariamente, a mentira é o que não fazemos com a verdade.

(Talvez ela não sinta medo de palhaços, mas daquilo que eles, com a verdade, não fazem.)

Uma história depende essencialmente da forma como é contada... =)

Joana disse...

Não és palhaço algum...
Beijo :)

Miss Murder disse...

Sabes que isto está mesmo bonito não sabes?

Ana das Pontas disse...

Escreves realmente muito bem. É raro ver um blog masculino onde se leia sentimento... :)